"Toda a gente culta lamenta que, nos países civilizados, ainda haja muitos seres humanos que não sabem ler. Parece-nos isto uma vergonha para a Civilização. De facto o é. Poucos, todavia, de entre toda essa gente culta, chegam a meditar um pouco sobre as vantagens e desvantagens de saber ou não saber ler.
A primeira vantagem de saber ler – primeira, por ser a que imediatamente ocorre a qualquer pessoa – é de ordem prática. Evidente se torna que, neste nosso mundo moderno, o analfabeto está praticamente inibido de muitas coisas. Mas outra vantagem – talvez não menos importante – oferece a leitura, que é de abrir o acesso à cultura. Analfabetos há que, pela experiência da vida, pelo trato com os homens, pelos dons naturais, adquirem aquele grau de cultura já implicada. E homens há que sabem ler mas não sabem dispor dessa estupenda vantagem, e então como que ficam analfabetos apesar de saberem ler.
Nos primeiros se torna particularmente aflitivo o analfabetismo. Pois se, com a simples experiência e os dons naturais, conseguem eles distinguir-se, até onde não iriam se soubessem ler, se pudessem cultivar a leitura? Quanto aos segundos, - são o exemplo dum mal que sempre existiu, mas particularmente alastra nos nossos vertiginosos dias. Sim, não basta saber ler, se por saber ler se entende distinguir uns certos caracteres e dar-lhes significado! Há um saber ler que vai muito mais longe, muito mais alto, muito mais fundo. E só este verdadeiramente abre as portas de oiro da cultura autêntica.
Neste superior sentido – não, não sabe ler o indivíduo que se limita a devorar jornais, revistas, selecções ou romances mais ou menos policiais, com um mínimo de actividade mental. Porque saber ler – no superior sentido – é meditar os grandes autores; dialogar com eles, discutir com eles os problemas que nos propõem; viajar de braço dado com eles, pelos maravilhosos reinos da Sensibilidade, da fantasia, da inteligência; admirar, conscientemente, o que nos ofereçam de grande, belo, verdadeiro; chegar, enfim, a ser digno do seu convívio, e enriquecer o espírito ao calor e à luz desse contacto.
Isto, sim, é saber ler, - porque saber ler é colaborar. Mas isto exige atenção, vagar, concentração, recolhimento, esforço. O profundíssimo prazer da boa leitura é com tal moeda que se paga. Aqui me dirão que a vertiginosa vida actual não chega para tanto! Não dá tempo. E eu bem vejo que em grande parte se substitui hoje a leitura pela Rádio ou a Televisão, como se pudesse o quer que seja substituir a leitura! Bem vejo que se lê onde calha, como calha, ao Deus dará. Por certo é melhor ler mal, que nada. Mas, no fim e ao cabo, ou o homem acabará por sofrer uma degradação, ou, na medida do possível, terá de se opor à vertigem em que hoje vai arrastado. Meus amigos! Em havendo vontade e juventude, há sempre uma medida do possível até contra a mais firme aparência do impossível."
José Régio, O Grito, n.º 5, 1 de Abril de 1960.
A primeira vantagem de saber ler – primeira, por ser a que imediatamente ocorre a qualquer pessoa – é de ordem prática. Evidente se torna que, neste nosso mundo moderno, o analfabeto está praticamente inibido de muitas coisas. Mas outra vantagem – talvez não menos importante – oferece a leitura, que é de abrir o acesso à cultura. Analfabetos há que, pela experiência da vida, pelo trato com os homens, pelos dons naturais, adquirem aquele grau de cultura já implicada. E homens há que sabem ler mas não sabem dispor dessa estupenda vantagem, e então como que ficam analfabetos apesar de saberem ler.
Nos primeiros se torna particularmente aflitivo o analfabetismo. Pois se, com a simples experiência e os dons naturais, conseguem eles distinguir-se, até onde não iriam se soubessem ler, se pudessem cultivar a leitura? Quanto aos segundos, - são o exemplo dum mal que sempre existiu, mas particularmente alastra nos nossos vertiginosos dias. Sim, não basta saber ler, se por saber ler se entende distinguir uns certos caracteres e dar-lhes significado! Há um saber ler que vai muito mais longe, muito mais alto, muito mais fundo. E só este verdadeiramente abre as portas de oiro da cultura autêntica.
Neste superior sentido – não, não sabe ler o indivíduo que se limita a devorar jornais, revistas, selecções ou romances mais ou menos policiais, com um mínimo de actividade mental. Porque saber ler – no superior sentido – é meditar os grandes autores; dialogar com eles, discutir com eles os problemas que nos propõem; viajar de braço dado com eles, pelos maravilhosos reinos da Sensibilidade, da fantasia, da inteligência; admirar, conscientemente, o que nos ofereçam de grande, belo, verdadeiro; chegar, enfim, a ser digno do seu convívio, e enriquecer o espírito ao calor e à luz desse contacto.
Isto, sim, é saber ler, - porque saber ler é colaborar. Mas isto exige atenção, vagar, concentração, recolhimento, esforço. O profundíssimo prazer da boa leitura é com tal moeda que se paga. Aqui me dirão que a vertiginosa vida actual não chega para tanto! Não dá tempo. E eu bem vejo que em grande parte se substitui hoje a leitura pela Rádio ou a Televisão, como se pudesse o quer que seja substituir a leitura! Bem vejo que se lê onde calha, como calha, ao Deus dará. Por certo é melhor ler mal, que nada. Mas, no fim e ao cabo, ou o homem acabará por sofrer uma degradação, ou, na medida do possível, terá de se opor à vertigem em que hoje vai arrastado. Meus amigos! Em havendo vontade e juventude, há sempre uma medida do possível até contra a mais firme aparência do impossível."
José Régio, O Grito, n.º 5, 1 de Abril de 1960.
"Stolled" from here
Por norma, concordo com todos os artigos, pensamentos ou citações que aqui coloco no blogue, quando tal não acontece, geralmente comento-os. Neste caso, não serão precisos comentários ao texto, pois concordo plenamente com o que é defendido.
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1 comentário:
Óptima escolha. Profunda, como gosto. Obrigada pela partilha. :)
Beijinhos
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