sábado, 3 de novembro de 2012

O menino d'olhos de gigante (excerto) - Almada Negreiros

Dizem que sou eu, o Menino d'Olhos de Gigante; e eu juro, pela minha boa sorte que não sou só eu!

Dedicatória d'o Menino d'Olhos de Gigante feito com a pretensão de poema universal, na linguagem poética da tonteria popular e com uma posição geográfica portuguesa.
Ao Ar, à Luz, ao Fogo, à Terra e à Água, como recordação dos nossos encontros.

Há um gigante da serra!
É um gigante tamanho
qu'a gente sente o gigante
mas não lhe vê o tamanho!

É tão grande o gigante
qu'a gente vê-lhe um pedaço
mas aonde o gigante acaba
já a vista não alcança.

Conhece o gigante a serra
e anda sempre escondido,
ora s'esconde no vento
ora finge que é luar,
ora se mistura na terra
e muitas vezes no ar,
cuida a gente que é o mar
qu'stá de longe a falar,
cuida a gente que são nuvens
que andam pla serra a passar,
cuida a gente andar na serra
e no gigante vai andar!

Esta, que se vai contar
não é história já contada,
foi pela serra ao luar
durante a noite rimada.

Lá em baixo a descansar
'stava a cidade deitada:
tão pequenos os telhados
vistos do alto da serra
qu'era os olhos d'espantar
e de não se acreditar
ter por baixo dos telhados
grandes casas d'habitar.

(...)

Pela serra ao luar
ia um menino sozinho
sem sono para se deitar.

Ia o menino a pensar
porque seria ele só
sem sono para se deitar?

Ia o menino a pensar
que há tanto por pensar
e a cidade a descansar.

Ia o menino a pensar
que se nasce para pensar
e nunca pra descansar.

Ia o menino a pensar
porque seria ele só
sem sono para se deitar.

Ia o menino a pensar
para nunca descansar
e ficar sempre a pensar.

Quem dorme sem ter pensado
deve ter sono emprestado,
não é sono bem ganhado.

Ia o menino a pensar
como poder arranjar
muita força para pensar.

Ia o menino a arranjar
muita força para pensar
e o próprio sono ganhar!

Veio o gigante do norte
disfarçado com o luar,
julgava que eu dormia,
começa a tirar-me os olhos.

Dá-me os meus olhos, gigante,
dá-me os meus olhos, ladrão!
Os olhos nunca se tiram
não servem senão ao dono.

Dá-me os meus olhos, gigante
qu'em mim é qu'os tinham posto!
Olha que Deus não s'engana
ao pôr os olhos em cada um.

Bem sei que eu sou menino
mas esses olhos são meus,
se são olhos de gigante
foram postos 'qui por Deus.

T'és gigante no tamanho
e eu sou gigante nos olhos
é Deus que quer assim
não me rapines os olhos.

Meus olhos são de gigante,
eu bem sei, eu já os vi
não é novidade nenhuma
que tu me dás, oh gigante!

Bem sei que eu sou menino
também que valho bastante,
no me corpo pequenino
pôs Deus olhos de gigante.

Não troco meus olhos por nada,
nem plo teu corpo, gigante!
O teu corpo é grande a mais
pra que caiba no jardim.

Eu sou do tamanho certo
que cabe por toda a parte
eu ando atrás dos meus olhos
'té onde forem parar,
não sou como tu, gigante,
olhos d'outros a roubar.

Não invejo o teu tamanho
que só cabe às escondidas
por onde eu gosto de andar
às claras pra toda a gente.

Não abuses do tamanho
não sei se sabes, gigante,
que Deus castiga com força
quem rouba o que é dos outros.

Os meus olhos de gigante
não pesam no meu tamanho,
quero tanto aos meus olhos
que os rasgo duma vez
se tu mos quiseres tirar.

Assim não pod'rás tu vir,
nunca mais, ouviste bem?
plos meus olhos espreitar.

Sim, sim, oh meu gigante!
não julgues, por ser menino,
não saiba fingir que durmo
quando vens todas as noites
espreitar plos meus olhos
que Deus na cara me pôs!

Talvez tenhas razão,
qu'reres meus olhos roubar,
porque um gigante sem olhos
não poderá gigantar.

Meus olhos não posso dar
nem os deixarei tirar,
mas se queres ver a lua
lá do castelo no ar
dou-te licença, gigante,
plos meus olhos espreitar;
mas não creio que tu saibas,
como eu, aproveitar
estes olhos de gigante
que Deus me deu para olhar.

Se tu quiseres combinar
pra vires todas as noites
plos meus olhos espreitar
é bem melhor para ti,
porque no caso contrário
eu já 'stou bem prevenido
e rasgo os olhos duma vez
antes que mos tir's de mim.

Tu tens corpo de gigante
falta-te olhos arranjar.
Os meus olhos de gigante
num tamanho de menino
obriguem-me a procurar
mim maneiras d'auguentar
o meu corpo pequenino
até que possa ficar
pró tamanho dos meus olhos;
e nunca pensei roubar
o teu corpo de gigante
que nem olhos sequer tem,
porque, juro-te, o teu corpo
a mim de nada serve
pois do que preciso agora
apenas tamanho tem.

Faze tu, como eu, gigante!
esses olhos que te deram
por pequeninos que sejam
faze tu pròs auguentar
até que possas olhar
sem teres de vir espreitar
plos meus olhos de gigante.

As meninas dos meus olhos
estão sempre a admirar
o meu corpo de menino
qu'está sempre a auguentar
para os meus olhos ganhar.

Todo o gigante que seja
começou por pequenino,
e Deus nunca fez gigantes
sempre Deus só fez meninos,
sempre Deus dá o bastante
pra que se faça gigante
ainda o mais pequenino.
Mas os gigantes d'agora
não são como antigamente
nã'é no tamanho que o são
é nos olhos da cara.
Foi Deus que pensou melhor
e conseguiu arranjar
pra que os gigantes d'agora
se pudessem governar
co'o corpo pequenino.

(...)


(Complexos que o senhor tinha com os olhos... )

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