sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Cartas de (muito) amor

Sem querer generalizar erradamente as grandes personalidades que foram aparecendo pelo mundo e que foram ficando na História, posso presumir (não afirmando) que todos tinham uns ou outros problemas de relacionamentos. Senão vejamos o caso de Fernando Pessoa (sou uma fã de fim de semana é verdade, mas sou fã) à sua querida Ofélia. Primeiro tem a decência de lhe mandar escritos deste tipo:
"às 4 da madrugada
Meu amorzinho, meu Bébé querido:
São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apezar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Ha trez noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horriveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estupida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o somno. É que, sem ter febre, eu tinha delirio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influencia directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de hontem arreliado com cousas, que se estão atrazando, relativas á vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermedio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma serie de noticias desagradaveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.
Depois, estar doente exactamente numa occasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.
Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espirito em que tenho vivido estes dias, estes dois ultimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausencia, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quasi três dias!
Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste hontem pelo Osorio? Comprehendo que estivesses tambem com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tães, que me doeu immenso ler a tua cartinha e ver o que soffrias. O que te aconteceu, amôr, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa peor que te acontecesse? Porque fallas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando d'elle, quando não tens para isso razão nenhuma?
Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimonia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remedio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sêde e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.
Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.
Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu
Fernando
19/02/1920"

Depois, lembra-se de escrever isto:


Todas as Cartas de Amor são Ridículas 

Todas as cartas de amor são 
Ridículas. 
Não seriam cartas de amor se não fossem 
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
Como as outras, 
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor, 
Têm de ser 
Ridículas.

Mas, afinal, 
Só as criaturas que nunca escreveram 
Cartas de amor 
É que são 
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia 
Sem dar por isso 
Cartas de amor 
Ridículas.

A verdade é que hoje 
As minhas memórias 
Dessas cartas de amor 
É que são 
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas, 
Como os sentimentos esdrúxulos, 
São naturalmente 
Ridículas.)

Álvaro de Campos


Terá sido um poema fruto de um ataque de consciência: afinal... as cartas de amor são ridículas, ele piegas, é que não!

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